A TEMPESTADE EM SEMENTE DE BRUXA

 

Em uma entrevista, Margaret Atwood comentou que A Tempestade é a obra em que Shakespeare chega mais próximo de escrever sobre a escrita. Esse caráter metalinguístico da peça é um dos elementos da criação de Shakespeare que parece ter sido transposto pela autora para seu reconto da peça, o romance Semente de Bruxa, história que também pode ser lida como uma obra que fala sobre a escrita: a escrita de um original, a escrita de uma recontagem, e mesmo a escrita em sentido mais amplo, na reviravolta de uma trajetória pessoal, no resgate de cenas da memória e de sentimentos do passado e mesmo a escrita de um sentido para a existência.

Link do evento: https://goo.gl/5qHaah

Na peça de Shakespeare, Próspero, mago e duque de Milão, é deposto por Antônio, irmão em quem ele confiava plenamente, e colocado em um barco com a filha Miranda para naufragar. Próspero e Miranda, entretanto, chegam a uma ilha quase deserta, habitada apenas por um ser disforme, filho da bruxa Sycorax, Calibã (semente de bruxa que dá título à obra) e por espíritos do ar como Ariel, aprisionado a uma árvore por um feitiço da bruxa. No reconto de Atwood, Felix (um dos possíveis sinônimos para a palavra latina prospero) é deposto de seu cargo de diretor teatral no momento em que está trabalhando em uma montagem de A tempestade, na qual pretende também atuar no papel de Próspero. O responsável por sua demissão do cargo é Anthony (Tony), seu parceiro profissional de muito tempo. Felix havia perdido há pouco sua única filha, ainda criança – também chamada Miranda – e vivia constantemente em memórias, idealizações e projeções sobre a filha morta.

No processo de tradução da obra de Atwood, um dos pontos que se destacou foi o modo como ela cria constantemente novas camadas que dialogam com o original. A autora não apenas se inspira na obra de Shakespeare e a reconta (algumas vezes, inclusive, fazendo alusões a outras peças do Bardo), mas insere a peça em diversas camadas de sua narrativa, criando como que uma rede em que a trama é constituída de vários aspectos de A tempestade.

O primeiro desses aspectos, e provavelmente o mais evidente, está nos nomes dos personagens. De Felix e Tony aos detentos da instituição prisional em que acontece a montagem da peça, há sempre uma aproximação. Ariel, o espírito do ar que ajuda Próspero em suas magias, por exemplo, é 8Handz, hacker capaz de invadir espaços virtuais, sensações ilusórias, efeitos especiais.
Uma segunda camada em que A tempestade também se faz presente é a estrutura do texto: os títulos dos capítulos, que de certa forma resumem a jornada de Felix, são retirados, em sua maioria, de cenas da peça de Shakespeare.

Além disso, a A Tempestade também pontua a narrativa como se fosse uma baliza para a trajetória e os pensamentos de Felix: é a peça que ele dirige e interpreta quando é demitido; é a jornada cujos passos ele revive em seu sentimento de traição e no desejo de vingança; é a trama em que ele busca soluções para seus dilemas, inspiração para suas ideias.

Uma quarta camada em que a peça shakespeariana aparece é na sua interpretação pelos detentos do complexo prisional: como a linguagem, as ideias, a narrativa de Shakespeare falam a leitores dos anos 2010 que não têm profunda intimidade com o autor clássico? Os detentos interpretam os personagens e se reconhecem neles, reinterpretam a linguagem shakespeariana e se apropriam dela em sua vida cotidiana, tornando A tempestade uma obra viva em sua própria experiência de vida.

Além disso, o lado mais emotivo, mais doloroso da peça é o texto que ecoa indefinidamente nas falas, comportamentos e ações imaginárias de Miranda, a filha de Felix. Assim, Miranda, a filha de Próspero, se torna uma espécie de espelho no qual Felix, em sua saudade incessante de sua filha Miranda e em seus sentimentos de culpa e perda, projeta o ideal da filha perdida.

Em toda sua narrativa, Atwood coloca frases inteiras de personagens da peça nas falas e pensamentos de seus próprios personagens. A identificação que se dá entre personagens de uma história e de outra e o modo como algumas contraposições trabalhadas na peça (liberdade/prisão, vingança/perdão, medo/coragem, entre outras) se repetem nas experiências dos personagens do romance é, em si, uma representação da própria circularidade de temas e preocupações das criações literárias e do processo de identificação entre leitores e personagens no ato da leitura. E, então, podemos ler Semente de bruxa como um texto em que Atwood nos fala sobre a escrita, assim como ela lê a peça de Shakespeare.

E há, ainda, a tempestade criada por Ariel para a vingança de Próspero que, na recriação de Felix se transforma em uma “peça interativa” que leva seus traidores à experiência de um naufrágio moral e emocional. É aqui que Margaret Atwood aproxima as ideias de magia e arte, demonstrando como ambas são capazes de transmutar sentimentos. Uma transmutação que está no cerne da peça de Shakespeare.

Sobre a loja

Com o objetivo de promover novos autores e obras globais, a Editora Morro Branco teve sua estreia no mercado editorial em agosto de 2016, com o lançamento de “A Biblioteca Invisível” na Bienal do Livro de São Paulo. De lá para cá, foram adquiridas obras de escritores de vários países, dentre eles Noruega, Islândia, Suécia, Finlândia, Jamaica, França, Inglaterra, Estados Unidos.

Pague com
  • Pagali
  • Pix
Selos
  • Site Seguro

Editora Morro Branco Ltda - CNPJ: 23.428.954/0001-03 © Todos os direitos reservados. 2024


Para continuar, informe seu e-mail